Opinión

A boleta única de papel na Argentina: avanço democrático e desafios pendentes

Carla Maria Nicolini

A essência da democracia moderna, embora fundamentada no ato de votar e ser votado, transcende a simples execução de pleitos, exigindo que os resultados sejam o fiel reflexo da vontade popular e que os processos sejam administrados sob padrões de competitividade e transparência reconhecidos internacionalmente. A integridade do sistema eleitoral, em uma acepção ampla, abarca desde o desenho legal e institucional até o processamento e fiscalização dos resultados, reconhecendo que as etapas prévias e posteriores ao dia da eleição são cruciais para a garantia da confiança do eleitor no resultado da disputa.

Nas palavras de José Ortega y Gasset, “(…)la salud de las democracias depende de un mísero detalle técnico: el procedimiento electoral; todo lo demás es secundario. Si el régimen de comicios es acertado, si se ajusta a la realidad, todo va bien; si no, aunque el resto marche óptimamente, todo va mal (…)”.

Esta afirmação ressalta o papel estruturante do instrumento de votação, que funciona como o nexo crucial entre as preferências da cidadania e a responsabilidade dos partidos, candidatos e candidatas. É fundamental, portanto, contar com um instrumento que assegure que, mantidas as demais variáveis constantes, todas as opções políticas tenham iguais probabilidades de serem eleitas.

Em sistemas federativos complexos, como o argentino, esse papel adquire relevância ainda maior, dada a coexistência de legislações provinciais autônomas, modelos operacionais diferenciados e tradições políticas locais que moldam a experiência do eleitor e a dinâmica competitiva entre as candidaturas.

Na Argentina, o sistema eleitoral nacional e na maioria das províncias utilizou historicamente a boleta partidária de papel, um instrumento que, embora tradicional, acumulou críticas severas por minar a competitividade e a confiança.

Eram cédulas de grandes dimensões, nas quais constavam os candidatos de uma mesma legenda para todos os cargos em disputa, cuja impressão era financiada com recursos públicos e realizada diretamente pelos partidos, que também assumiam a responsabilidade por sua distribuição e reposição nas seções de votação ao longo do dia de eleição.

Essa dependência criava assimetrias estruturais, pois se um partido não conseguisse distribuir suas boletas em todo o território e garantir sua disponibilidade durante toda a jornada eleitoral, o eleitorado não encontraria a oferta eleitoral completa na sala escura, e as candidaturas encontrariam limites para serem escolhidas, ferindo, na prática, a liberdade de escolha e criando um déficit democrático estrutural.

Além disso, o sistema era historicamente vulnerável ao extravio, à falta ou à destruição de cédulas por parte de fiscais e simpatizantes rivais, uma prática viciosa que impedia os eleitores de votar em certas forças políticas, especialmente as minoritárias.

O consenso entre especialistas sobre a necessidade de mudar o instrumento de votação era amplo. A discussão sobre a boleta única de papel (BUP), ou cédula única como é conhecida em muitos países latino-americanos que a adotaram, foi impulsionada por organizações da sociedade civil, que trabalharam articuladamente para instalar o tema no debate público.

A adoção da BUP em nível nacional, que alinhou a Argentina à tendência mundial de uso de cédulas únicas, foi uma «vitória épica» para as organizações dedicadas à causa eleitoral.

O processo de aprovação no Congresso Nacional foi complexo. O debate sobre a possível reforma do instrumento de votação estava em curso na Câmara de Deputados em maio de 2022. O projeto, inicialmente impulsionado por blocos da oposição daquele momento, foi aprovado na Câmara em junho de 2022 e enviado ao Senado.

Após resistência, o projeto foi reativado em setembro de 2024 pelo Senado, recebendo modificações, sendo a mais significativa a eliminação da opção de lista completa na BUP, que foi crucial para destravar a tramitação do projeto de lei no Senado, permitindo sua aprovação final. Ao retornar à Câmara dos Deputados, as alterações do Senado foram ratificadas e o projeto foi aprovado e convertido na Lei 27.781/2024.

O novo sistema de votação por meio da BUP representa um avanço democrático indiscutível, superando as vulnerabilidades sistêmicas ligadas à provisão e custódia das cédulas. Em contraste com a boleta partidária, o instrumento de votação oficial provido pelo Estado equipara as condições de competição entre partidos, além de facilitar o exercício do sufrágio pelo eleitor.

A implementação também alivia os esforços que recaíam sobre os atores partidários territoriais, cujo capital político estava ligado à distribuição e reposição das boletas, reduzindo o impacto das máquinas partidárias.

Do ponto de vista logístico e econômico, a BUP se traduziu em maior eficiência e previsibilidade na gestão dos votos. O sistema de boleta partidária era criticado por ser obsoleto e custoso. Com a BUP, a impressão é feita em uma quantidade igual ao número de eleitores mais um percentual adicional de 5% para reposição, ao contrário dos múltiplos padrões que cada partido imprimia anteriormente.

Embora o custo individual da cédula única possa ser maior devido à gramatura do papel e aos recursos de segurança, o custo agregado total é estimado como menor, eliminando o desperdício gerado pela impressão de múltiplos padrões e os desvios de verbas públicas transferidas aos partidos. A centralização da impressão pelo Estado garante um uso mais eficiente dos recursos.

A mecânica de votação também foi simplificada. No sistema anterior, o eleitor entrava na sala escura, escolhia a boleta de seu partido, colocava-a no envelope e a depositava. Se quisesse realizar o voto cruzado (votar em partidos diferentes para categorias distintas), a pessoa tinha que cortar fisicamente a folha de papel com tesoura ou régua, o que era mais laborioso e arriscado, aumentando o risco de anulação. Esse custo mecânico e o risco envolvido desincentivavam o voto cruzado, favorecendo o efeito arrasto, em que o eleitor votava no mesmo partido para todas as categorias.

Com a BUP, o eleitor recebe uma única cédula impressa com todos os candidatos e partidos. A votação se dá marcando um «X» ou com um lápis/caneta a opção escolhida para cada categoria de cargo. Essa mecânica torna o voto cruzado muito mais fácil, pois o eleitor marca independentemente cada cargo, eliminando a necessidade de recortar boletas. Além disso, a marcação do voto na cabine, sem a manipulação de múltiplas cédulas, reduz o risco de fraude e de erros.

O voto em branco também mudou. Sob o sistema de boleta partidária, o voto em branco para todos os cargos era expresso pela introdução de um envelope vazio. Para votar em branco em apenas algumas categorias, era preciso cortar fisicamente a cédula. Com a BUP, o voto em branco se expressa pela omissão de marcação no espaço correspondente aos cargos em disputa.

A implementação nacional da BUP ocorreu nas eleições legislativas de 26 de outubro de 2025. O balanço geral da primeira experiência em nível nacional da BUP foi amplamente positivo, com autoridades e observadores destacando sua agilidade, transparência e confiabilidade.

Em termos de integridade, o sistema provou ser ágil, transparente e confiável para os votantes, facilitando a contagem provisória. O percentual de votos nulos a nível nacional, embora minimamente mais elevado que o usual, permaneceu baixo, entre 2,5% e 3%, o que não foi considerado um fator significativo de preocupação ou desconhecimento.

Por outro lado, o voto cruzado registrou um incremento nas categorias onde houve mais de uma disputa. A experiência foi considerada um ponto de partida auspicioso para aprimorar as práticas eleitorais.

Contudo, a análise crítica da implementação da BUP em 2025 demonstra que a reforma do instrumento de votação, por si só, não resolve todos os problemas estruturais do complexo sistema eleitoral argentino. Os desafios persistem e se concentram em três áreas principais: o design e a mecânica do novo instrumento, a persistência de más práticas em distritos de baixa integridade, e a necessidade de harmonização frente à autonomia legislativa subnacional.

Um dos maiores desafios técnicos reside na necessidade de a BUP se adequar à realização das Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO) (regime suspenso para 2025, mas fundamental no sistema) e à simultaneidade das eleições nacionais e provinciais. Embora o marco legal do regime de simultaneidade preveja a intervenção da autoridade nacional (Junta Eleitoral Nacional), o desenho da BUP para eleições simultâneas é um ponto crítico. A questão central é decidir se a oferta deve ser apresentada em uma única cédula inclusiva (nacional e provincial) ou em boletas separadas por nível.

A unificação em uma única boleta, que inclua todas as categorias, tenderia a manter o «efeito arrasto» que o cabeça de lista nacional exerce sobre os cargos provinciais, tal como ocorria com a boleta partidária. No entanto, esta opção pode levar a um problema de dimensões do instrumento (tamanho da boleta), o que complicaria a manipulação tanto pelo eleitorado quanto pelas autoridades de mesa.

O design para as PASO também é desafiador. As PASO permitem a prática habitual de adesões cruzadas, onde uma lista interna em uma categoria acompanha diferentes listas internas de outra categoria (por exemplo, listas de deputados aderindo a diferentes pré-candidaturas presidenciais). Para manter essas práticas permitidas, o desenho da BUP precisaria admitir a reiteração de listas na cédula única, o que pode afetar a igualdade entre os competidores.

Além da simultaneidade e das PASO, a experiência inicial da BUP em 2025 levantou críticas operacionais sobre o design em si. Especialistas e políticos apontaram que o tamanho da letra e a visibilidade dos candidatos eram pequenos demais, dificultando a distinção e a escolha do eleitor, especialmente para idosos e pessoas com baixa visão.

Outra questão de design complexa é a gestão do voto em branco. No sistema de boleta partidária, o voto em branco se expressava pela supressão da boleta e introdução do envelope vazio na urna. Com a BUP, o voto em branco é expresso pela omissão de marcação no espaço correspondente aos cargos em disputa.

A decisão de não incluir uma caixa específica para o voto em branco na BUP gerou debate. A experiência da província de Santa Fé, que adota o sistema de cédula única desde 2011, implantou inicialmente uma caixa para o voto em branco e viu um aumento subsequente nos votos nulos, o que foi presumido como confusão dos eleitores, o que levou à sua eliminação na BPU, com o retorno dos votos válidos aos níveis históricos.

Por outro lado, na província de Salta, embora tenham registrado um nível baixo de votos nulos nas eleições de 2025, o número de votos em branco para o cargo de deputado nacional foi superior a sete forças políticas, correspondendo à terceira opção mais votada.

Fica claro assim, que a escolha do design, seja incluindo ou não a opção de voto em branco, acarreta consequências diretas sobre a validade do voto e a probabilidade de erros, o que reforça a importância da capacitação massiva do eleitor. E ainda, que apesar de a BUP minimizar o risco de erros involuntários em comparação com o corte físico de boletas, o risco de anulação do voto por marcação incorreta ou dupla marcação (ato que pode ser intencional) persiste.

No que diz respeito à integridade geral do sistema, o fato de a BUP ter sido adotada em nível nacional não resolve os problemas relacionados à diversidade normativa entre sistemas provinciais e o nacional.

A falta de clareza na lei nacional sobre a aplicação da BUP em caso de eleições simultâneas com províncias que usam instrumentos diferentes ou que têm legislações complexas pode gerar conflitos de interpretação ou soluções divergentes por distrito.

Com efeito, permanecem vigentes em muitas províncias práticas políticas locais resistentes à modernização institucional, tais como a “Lei de Lemas” – que permite que votos de um candidato perdedor dentro de um partido sejam transferidos automaticamente para o vencedor do mesmo partido – e as “Listas Colectoras” – que permitem que diferentes partidos apoiem o mesmo candidato (executivo), misturando candidaturas e fracionando votos através de diversas listas legislativas. Essas práticas multiplicam as combinações e, se combinadas com uma BUP unificada em eleições simultâneas, poderiam resultar em um instrumento confuso e difícil de manejar.

Em conclusão, a adoção da Boleta Única de Papel (BUP) na Argentina, culminando em sua implementação nas eleições legislativas de 2025, marca um avanço democrático substancial. A reforma, impulsionada por décadas de trabalho da sociedade civil, superou a vulnerabilidade estrutural do sistema de boletas partidárias, garantindo a provisão da oferta eleitoral completa pelo Estado e fortalecendo a equidade na competição.

A experiência inicial foi amplamente positiva em termos de agilidade e funcionalidade, demonstrando que o novo instrumento é bem aceito pela cidadania e pelas autoridades de mesa.

Contudo, para que este avanço se traduza em integridade eleitoral plena, são necessárias melhorias contínuas. O aprimoramento do sistema BUP exige um foco no design técnico idôneo que minimize erros e confusão, especialmente em cenários de simultaneidade e múltiplas categorias.

Neste sentido, é necessário que a lei nacional contemple explicitamente o desenho da boleta para eleições simultâneas, preferencialmente separando os cargos nacionais e provinciais em boletas distintas para garantir maior facilidade de manejo e clareza para o eleitor no processo de escolha.

Além disso, deve haver um investimento contínuo e maciço em capacitação eleitoral para eleitores e autoridades de mesa, para que se familiarizem com o novo instrumento e se minimize o risco de voto nulo ou erro.

Os desafios persistentes demandam reformas que transcendam o instrumento de votação, atacando os problemas endógenos do sistema federal argentino. A autonomia legislativa provincial impede uma solução uniforme. O sistema também precisa buscar maior transparência e abertura de dados para permitir a fiscalização eficaz por parte da sociedade civil e dos partidos.

A BUP é um poderoso instrumento técnico-jurídico para garantir a democracia, mas o fortalecimento da integridade eleitoral depende de um compromisso político e social mais amplo para reformar as regras do jogo que ainda favorecem a desigualdade e a opacidade.

A experiência argentina de 2025 é um caso paradigmático que demonstra como ajustes procedimentais podem fortalecer a confiança pública e expandir a legitimidade democrática, mas a jornada rumo à integridade total exige vigilância constante e ação política contra os vícios arraigados.

Referências Bibliográficas

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CIPPEC (POMARES, J., LEIRAS, M., PAGE, M. e LENARDUZZI, J.). (novembro de 2011). Cambios en la forma de votar. La experiencia de la boleta única en Santa Fe. Documento de Políticas Públicas/Análisis Nº98. Buenos Aires: CIPPEC.

ORTEGA Y GASSET, J. (1930). La rebelión de las masas. Ciudad de México.

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https://www.clarin.com/politica/boleta-unica-papel-debut-exitoso-pais-trajo-inconvenientes-denuncias_0_lA7Y1eH1Qu.html

https://www.lanacion.com.ar/politica/el-gobierno-busca-uma-victoria-legislativa-con-la-sancion-de-la-boleta-unica-papel-para-las-proximas-nid30092024

https://www.lanacion.com.ar/politica/la-boleta-unica-de-papel-debuto-con-exito-y-sin-denuncias-aunque-por-los-errores-casi-se-duplico-el-nid26102025

https://www.abelcornejo.com.ar/noticias/el-voto-en-blanco-fue-la-tercera-fuerza-en-salta-en-la-categoria-diputados-41362

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