VOLGANE OLIVEIRA CARVALHO.

Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Servidor do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão. Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

As eleições chilenas de novembro de 2021 serviram, entre outras coisas, para escancarar alguns dos muitos dilemas das democracias contemporâneas. A ideia de um regime conceitualmente simples de divisão de poderes conforme a vontade manifesta pelo povo é cada vez mais insuficiente para atender os anseios de uma sociedade hiperconectada e pouco paciente.

O Chile apresentou-se nas últimas décadas como uma ilha de prosperidade e estabilidade política em uma América Latina conturbada por crises econômicas e sucessivas instabilidades políticas. Enquanto alguns países mergulharam em governos autoritários ou experimentaram rupturas decorrentes do impeachment de seus presidentes, no Chile havia um sistema bem azeitado de eleições periódicas, sem a possibilidade de reeleição, em que se viu a alternância de poder entre representantes da centro-direita e da centro-esquerda sem qualquer trauma pós-eleitoral.

Esse modelo começou a soçobrar a partir de uma sucessão de protestos que reivindicatórios de mudanças nas políticas sociais, inicialmente, buscando um novo modelo educacional (a chamada revolta dos pinguins), depois tentando impedir o reajuste das tarifas de metrô e, por fim, evoluindo para contestações de caráter mais difuso, espelhando uma profusão de insatisfações represadas. O ápice de tal processo foram os estalidos sociales de 2019 quando milhares de pessoas foram às ruas reivindicando uma espécie de refundação do Estado chileno.

O governo reprimiu severamente as manifestações, o que se explica, em parte, pela difusão da ideia, equivocada, de que o Estado de bem-estar social é fruto de sociedades excessivamente democráticas, em que há grande participação política da população nos processos decisórios, corpos sociais que se deixam dominar pelos desejos das massas[1].

Os regimes em que há grandes níveis de participação popular são vistos com reticências pelos defensores de políticas econômicas de caráter liberal[2]. Inevitavelmente, as experiências mais recentes mostram que o sucesso de políticas liberalizantes é acompanhado por restrições à participação democrática. Diferentes países da América Latina ingressaram nessa espiral na década de 1990 com a adoção de políticas econômicas neoliberais. “Com essas medidas, tais Estados, a exemplo do Brasil, encontram dificuldades de desempenhar suas funções de regulação econômico-sociais internas. Daí, decorrem fortes impedimentos para o avanço da democracia”[3].

O ápice de tal processo foram os estalidos sociales de 2019 quando milhares de pessoas foram às ruas reivindicando uma espécie de refundação do Estado chileno. O resultado mais evidente de tal movimento foi a convocação de um plebiscito que acabou decidindo pela convocação de uma Convenção Constituinte com o objetivo de reformar a Constituição de 1980, elaborada durante o governo ditatorial de Augusto Pinochet e que ainda possuía laivos autoritários[4].

A votação para a escolha dos constituintes foi um marco na democracia do país, pois, houve paridade de gênero entre os escolhidos, foi assegurada a presença de 17 representantes dos povos originários dentre 155 membros da Convenção e houve um número enorme de eleitos oriundos de listas independentes sem qualquer vinculação partidária.

Seguindo o espírito da mudança, alterou-se a legislação para permitir que os governadores pudessem ser eleitos pelo voto direto pela primeira, tendo em vista que até então todos eram nomeados pelo Presidente da República.

O que viu a seguir foi um número muito alto de eleições em um curtíssimo espaço de tempo, em menos de dois anos os eleitores chilenos foram convocados às urnas por mais de uma dezena de vezes para escolher representantes para diferentes cargos públicos. O excesso de pleitos acabou causando uma espécie de estafa democrática nos cidadãos, parte desse cansaço pode ser atribuído ao fato de que mesmo após tantas votações não foi possível identificar alterações reais na vida das pessoas.

Trata-se da desilusão com a democracia decorrente da ideia de que o voto não possui força suficiente para modificar aquilo que realmente importa para os cidadãos, escolhem-se os representantes, mas as adversidades continuam a assolar a vida dos eleitores dia após dia.

Esse cenário apontava para um novo ambiente para o exercício dos direitos políticos no país, especialmente, quando se leva em consideração o fato de que o voto é voluntário. O atendimento das reivindicações sociais parecia servir de estímulo para uma maior participação nos processos políticos nacionais.

Os direitos políticos historicamente impossibilitaram a concretização da igualdade formal entre os indivíduos e a universalidade do acesso às suas benesses, restringindo seu acesso primeiro aos proprietários rurais, depois a homens brancos e livres e apenas no século XX reconhecendo a possibilidade de participação política das mulheres, mas ainda excluindo algumas categorias como os menores de idade e alguns militares[5].

A dinâmica dos direitos fundamentais, entretanto, não se mantem imune às modificações sociais, ao inverso, os limites dos direitos são moldados conforme os reclames sociais e refletem um momento histórico. O anseio por incremento nos processos de participação política é apenas parte de um processo maior de especificação e multiplicação dos direitos fundamentais o que ocorreu:

  1. a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concentricidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc[6].

Esse processo explica a necessidade de abertura conceitual no campo dos direitos políticos para que seja possível atender as novas necessidades e características do indivíduo na modernidade líquida. A abertura do rol de direitos é a percepção de que o voto periódico em representantes muitas vezes desacreditados e a possibilidades de candidatar-se, ainda que, com baixa taxa de sucesso, não são o suficiente para satisfazer um cidadão que está mais informado e que perdeu muito de seu senso comunitário e busca a realização de interesses individuais. Por esse motivo, muitos falam do fracasso dos modelos representativos da democracia liberal na atual quadra histórica.

O novo quadro dos direitos políticos deve ser desenhado de acordo com os desejos apontados como primordiais pelos cidadãos. Dessa amálgama de anseios emergem diferentes solicitações muito diversas como: a garantia de eleições livres de fraudes e corrupção, a criação de mecanismos que facilitem o exercício do voto (locais de votação e urnas eletrônicas dotadas de acessibilidade, por exemplo), o respeito ao direito das minorias políticas e da oposição parlamentar, o direito de associação política e a participação social ativa nos processos decisórios.

No campo da participação social ativa, destaca-se a atuação dos cidadãos nas atividades de formulação de políticas públicas. A efetiva participação dos diferentes agentes sociais em tal mister, constitui, indubitavelmente, vertente importante das novas perspectivas que devem ser atribuídas aos direitos políticos, por responderem a muitas das perguntas formuladas pelos cidadãos.

A necessidade de participação típica da modernidade líquida materializa-se, também, através do engajamento político independente de filiação partidária. A atividade política passa a ser acessível aos cidadãos que preferem manter-se ao largo dos partidos políticos, mas que, mesmo assim, acreditam que podem contribuir para o debate democrático.

A participação direta dos cidadãos desgarrando-se do modo tradicional de realização dos seus anseios através da atuação de seus representantes eleitos decorre, em certa medida, da perda da força do voto e da percepção de que “a luta pelo poder se desenrola essencialmente entre elites”[7]. O bem-estar da maioria da população pode acabar escondendo o sofrimento de uma parcela de invisibilizados, “[…] grupos da periferia da sociedade, fracamente organizada e protegida apenas através de direitos fundamentais”[8].

Esse é o cenário clássico do ocaso das democracias liberais que tem assolado inúmeros países, mas no caso chileno há algumas peculiaridades que não podem ser desprezadas.

Talvez a grande amálgama que unisse os partidos tradicionais chilenos fosse o apego à democracia, à participação política, aos governos representativos e o desprezo ao período autoritário no qual o país esteve mergulhado por quase duas décadas. Havia um respeito mútuo e submissão aos resultados eleitorais como modo de consolidar a democracia do país e não voltar aos tempos áridos de antes.

O novo cenário eleitoral defenestrou do embate presidencial os dois grupos que se alternaram no poder nas últimas três décadas. Habilitaram-se para o segundo turno Jose Antonio Kast, apontado por alguns como representante da direita e visto por outros como membro de um grupo de extrema-direita e Gabriel Boric, jovem político que representa a esquerda.

Os eleitores basicamente se desaglutinaram, saindo da segurança e conforto do centro político e caminhando em direção aos extremos, passando por terrenos até então desconhecidos da maioria absoluta dos votantes. Qual a razão deste comportamento inusual?

Os chilenos aparentemente viveram imersos em uma democracia pavloviana, sempre que eram apresentadas palavras de ordem como “risco de retorno ao autoritarismo”, “necessidade de união nacional” e “defesa das liberdades” os eleitores instintivamente punham-se em marcha e se aglutinavam em torno dos partidos tradicionais de centro, às vezes mais à direita, às vezes mais à esquerda, esse era seu campo de segurança.

Os protestos de 2019, a Convenção Constitucional e as sucessivas eleições, entretanto, mostraram que este modelo envelhecera. Alguns fatores explicam esse processo. Em primeiro lugar há que se reconhecer a drástica modificação do modelo social em decorrência da modernidade líquida e sua profusão de informações que perseguem as pessoas atualmente, ambiente em que todos estão livres para produzir conhecimento e difundi-lo para uma quantidade incomensurável de pessoas, valendo-se apenas de tecnologias simples e acessíveis a todos através de um smartphone.

O segundo elemento a ser considerado é o recrudescimento do individualismo, a ideia da importância da coletividade está em descrédito. Nem mesmo a pandemia de COVID-19 foi capaz de reavivar a importância da vida gregária para o alcance do bem-comum.

Zygmunt Bauman[9] resumiu esse cenário quando formulou o conceito de modernidade líquida como uma supressão da modernidade sólida, reconhecendo o valor de elementos inovadores do século XXI como a desmesurada produção de informação, que a passa a ser produzida e reproduzida por qualquer pessoa sem filtros e, muitas vezes, contrapontos e o aumento do individualismo[10], em detrimento da ideia de coletividade.

Esse novo indivíduo exige alterações sistêmica que incluam sua maior participação, o que torna o conceito tradicional de direitos políticos anacrônico e insuficiente. O cidadão da modernidade líquida ambiciona mais do que o simples acesso periódico às urnas para votar. Esse novo eleitor:

[…] luta por direitos e reconhecimento, não por poder. Não sacrifica a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma organização. Não se referencia por líderes ou ideologias. […] É multifocal, abraça várias causas simultaneamente. Muitos atuam de modo programático, profissionalizam-se como voluntários, buscam resultados mais do que confrontação sistêmica[11].

O terceiro elemento é o aumento de eleitores jovens, que além de representar com fidedignidade o ambiente de hiperinformação e individualidade exagerada, não trazem na memória qualquer lembrança do período de governo autoritário, seja porque não o vivenciaram, seja porque não possuíam condições de compreender o que ocorria no país.

Essa massa de votantes não foi submetida à experiencia de Pavlov e, consequentemente, permanecem inertes quando escutam apelos em favor da democracia, das liberdades individuais e da defesa da sociedade.

Esses cidadãos demonstram coragem frente aos temores dos seus pais e avós por crer que se tratam apenas de quimeras. Contudo, possuem seus próprios medos que reputam mais graves e reais. O sucesso de certos líderes políticos se acha justamente na ardilosa manutenção e estímulo destes medos.

A extrema-direita assombra os seus eleitores com a ameaça da imigração, do narcotráfico e da violência urbana e vende soluções para esses cancros que são concomitantemente simples e miraculosas. A esquerda oferece ao eleitor a resolução de suas vicissitudes sociais, a carestia, a ausência de moradia, a previdência social, o ensino e a saúde públicos.

Nesse ambiente de enormes complexidades há ainda o fato de o voto ser facultativo, assim, também leva vantagem quem seduz o eleitor e o convence de comparecer às urnas pela décima no curto espaço de dois anos. Aparentemente os pavlovianos têm comparecido menos às urnas, talvez pelo fato de pretenderem ceder às pressões da modernidade hiperconectada.

Interessante perceber que o Chile acabou se tornando um importante laboratório para a eficácia dos direitos políticos contemporaneamente. Todas essas informações ainda serão insuficientes para desenhar um prognóstico para o futuro da democracia chilena, mas nos permitem concluir que a mera concessão do direito ao voto não é mais suficiente para satisfazer as necessidades dos cidadãos.

Além disso, ficou claro, igualmente, que os titulares dos direitos políticos não podem ser encarados como um grupo homogêneo que necessita das mesmas prestações estatais. Muito ao inverso. A formação da Convenção Constitucional espelhou parte deste cenário com a evisceração dos anseios de mulheres, indígenas, moradores das periferias, campesinato e membros da comunidade LGBTQIA+.

As lições da experiência democrática chilena estão à mostra para que possam orientar outras nações e os próprios agentes políticos da terra de Neruda. Parecem apontar para um surgimento de uma nova cidadania.

Distinguindo-se de outras versões, a cidadania assim definida não está mais confinada dentro dos limites das relações com o Estado, ou entre Estado e indivíduo, mas deve ser estabelecida no interior da própria sociedade, como parâmetro das relações sociais que nela se travam. O processo de construção de cidadania como afirmação e reconhecimento de direitos é, especialmente na sociedade brasileira, um processo de transformação de práticas arraigadas na sociedade como um todo, cujo significado está longe de ficar limitado à aquisição formal e legal de um conjunto de direitos e, portanto, ao sistema político-jurídico[12].

A sociedade já vem se organizando em grupos de pressão que agem em diferentes frentes e com diversas técnicas, mas sempre com objetivo de fazer valer os interesses de cidadãos que conseguiram se organizar.

O leque abrange desde associações que representam grupos de interesses claramente definidos, uniões (com objetivos de partido político), e instituições culturais (tais como academias, grupos de escritores, radical professionals, etc.), até “public interest groups” (com preocupações públicas, tais como proteção do meio ambiente, proteção dos animais, testes dos produtos, etc.), igrejas e instituições de caridade[13].

Quanto ao deslinde da eleição, o resultado é imprevisível, mas suas consequências não estarão restritas ao nome e comportamento do novo inquilino do Palácio de la Moneda, produzirá um novo capítulo na democracia chilena e no modo de exercício dos direitos políticos pelos seus titulares.

 

[1] DRAIBE, Sônia Miriam. O Welfare State no Brasil: características e perspectivas. Universidade Federal de Campinas – UNICAMP. Núcleo de estudos de políticas públicas -NEPP. Caderno de Pesquisa nº 08, 1993.

[2] Como pontuado por ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas do Welfare State. Lua Nova, São Paulo, n. 24, set. 1991, p. 88, referindo-se ao século XIX: “A democracia tronou-se o calcanhar de Aquiles de muitos liberais”.

[3] BEHRING, Elaine Rossetti. As novas configurações do Estado e da Sociedade Civil no contexto da crise do capital. Serviço Social: Direitos sociais e competências profissionais. CFESS, Brasília, 2009, p. 6.

[4] JENSEN, Jaime Antonio Etchepare; VILLACENCIO, Andrea Carolina Ibañez. Manual de formación ciudadana. Santiago: Universidad del Desarrollo, 2020.

[5] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

[6] Idem, p. 68.

[7] HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. II, p. 60.

[8] Idem, p. 82.

[9] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

[10] Contraditoriamente, BOBBIO, Norberto. Op. cit. p. 61 vislumbra no individualismo características positivas: “O individualismo é a base filosófica da democracia: uma cabeça, um voto”.

[11] NOGUEIRA, Marco Aurélio. As ruas e a democracia: ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013.

[12] DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Política & Sociedade, n.05, out. 2004, p. 153.

[13] HABERMAS. Jürgen. Op. cit. p. 87.