Luiz Gustavo de Andrade

Advogado. Mestre em Direito. Professor da Graduação e Pós-Graduação do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Curitiba (Unicuritiba). Membro da Comissão de Gestão e Controle da Administração Pública (OAB-PR). Membro da Comissão de Direito Eleitoral (OAB-PR). Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Política (ABRADEP). Membro do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral (IPRADE). Editor Executivo da Revista Paraná Eleitoral (TRE-PR). Membro Fundador do Instituto Mais Cidadania.

  1. Estado e Constituição no Chile e no Mundo

O Estado nem sempre existiu. Ele é fruto do Renascimento e da Modernidade. “A transição da Idade Média para a modernidade não foi uma reviravolta repentina”. Seu surgimento possui uma fase intermediária, “que por mais de três séculos (1350 a 1600 dC) foi gerando aberturas mentais cada vez mais conducentes à incubação de filosofias modernas. Essa transição é o Renascimento”[1].

Mesmo o Estado, nem sempre foi constitucional. O Estado constitucional contemporâneo tem sua gênese na Constituição Mexicana de 1917 e, dois anos depois, na de Weimar, em uma concepção de Estado Democrático de Direito, organizado com o fim de proteger direitos fundamentais e sociais, “esteios de um Estado Social”[2]. Na Europa,  o Estado Constitucional “contou com o concurso dos partidos políticos que tradicionalmente estiveram no poder no século XX”.

Já no Chile, Cerda explica que “As ideologias da modernidade foram introduzidas (…) no final do século XVIII, por chilenos de elevada situação econômica que viajaram para Paris e as absorveram dos enciclopedistas”[3]. O início do século XX, no Chile, foi marcado pela assunção da Frente Popular (1037) apoiada “pela Internacional Comunista”, tendo Aguirre Cerda sido, posteriormente, sucedido por Juan Antonio Ríos (1942-1946), o qual pregava uma “ação coordenada de todas as funções econômicas”. Gonzáles Videla (1946-1952) e Carlos Ibáñez (1952-1958) defenderam reformas e o fim da corrupção, assim como Jorge Alessandri (1958-1964), eleito com discurso de concretização de políticas agrário-reformistas, discurso este também presente no governo de Frei Montalva (1965-1970), para quem deveria haver “1. Reforma agrária (…) 2. Promoção popular, visando o aumento da participação social e a melhoria da qualidade de vida das camadas mais carentes”[4].

As eleições presidenciais de 1970 no Chile levaram ao Poder, Salvador Allende, com aproximadamente 36% dos votos. Em 1971, “em uma eleição complementar disputada por Valparaíso, ganhou o candidato de direita, e esse triunfo permitiu que se rearmasse politicamente”. Allende entendia que a única maneira de sua revolução ter êxito seria dentro da lei. Contudo, “não tinha instrumentos jurídicos e também não eram fáceis de obter, pois a UP não tinha maioria parlamentar”[5].

Em 11 de setembro de 1973 vem o golpe de Estado: “a intervenção das Forças Armadas que derrubou o Governo Allende e a Unidade Popular”[6]. A economia chilena passa a ser administrada pelos chamados “tecnocratas”, mais tarde batizados como “Chicago Boys”, de quem o economista Milton Friedman, principal expoente das políticas neoliberalistas, seria o mentor. Há, assim, uma total mudança de rumos, passando-se de um governo de caráter socialista, que promovia a reforma agrária e a nacionalização do cobre por meio da intervenção estatal, para um governo de livre mercado, pautado na privatização de serviços públicos essenciais e de empresas ligadas ao Estado.

Neste contexto e neste período que nasce a atual Constituição chilena, datada de 1980. A Constituição chilena representaria o legado da ditadura militar chinela, de Augusto Pinochet. Ou seja, a conformação de um papel secundário do Estado em temas como saúde, educação e seguridade social, justamente os temas sensíveis que levaram os chilenos a se manifestar no final de 2019, contexto este no qual se ajusta a abertura de um processo constitucional.

Pertinente observar que no Brasil estabeleceu-se discussão semelhante, no pós-período militar. Araújo lembra que na ocasião, José Afonso da Silva enfatizava uma “decadência” do regime de 1964 “para justificar a presença de um poder constituinte ‘originário’ no processo e não simplesmente de um derivado’”. “Mais ou menos no mesmo sentido se dá a fina argumentação de Raymundo Faoro, cujo ensaio de 1981 (…) sustenta a tese da assembleia constituinte de plenos poderes com base não na ruptura revolucionária”, mas no fato “da ‘decomposição de legitimidade’ do regime”. No fundo, “dizia ele, era para evitar tal ruptura, e não por ser uma consequência dela, que se deveria convocar uma assembleia constituinte”[7].

  1. A atual Constituição Chilena e os Levantes Populares de 2019

A atual Constituição do Chile, do ano de 1980, em termos estruturais, assemelha-se com a brasileira. Possui uma parte introdutória, com regras inerentes à instituição do país como um Estado Democrático, seguida de disposições sobre Nacionalidade e Cidadania e Direitos e Deveres Constitucionais, pautados na liberdade, na vida, propriedade e trabalho. As questões sobre organização do Estado chileno aparecem a partir do artigo 24, no capítulo sobre o “Gobierno”. Executivo, Legislativo e Judiciário são, então, disciplinados nessa sequência. O Ministério Público possui tópico próprio, a partir do artigo 83 e o Tribunal Constitucional foi destinatário de capítulo específico (Capítulo VIII).

Diferentemente do Brasil, onde a Justiça Eleitoral reúnes funções jurisdicionais e administrativas no que tange às eleições, no sistema estatal chinela, as funções administrativas de organização das eleições ficam a cargo de um serviço autônomo, denominado “Servicio Electoral”, sendo da Justiça Eleitoral a competência de julgamento de litígios envolvendo as eleições (função exclusiva jurisdicional), conforme Capítulo IX do texto constitucional chileno.

A disciplina das Forças Armadas, do Conselho de Segurança Nacional e do Banco Central, bem como a administração do interior do Estado chileno, basicamente encerra o texto constitucional daquele país.

Apesar de em sua estrutura, o texto não diferenciar das demais cartas constitucionais latino-americanas, há fortes críticas a ela, em razão do momento de sua edição. Segundo Henríquez Viñas, a Constituição “foi originalmente concebida refletindo uma democracia protegida da irracionalidade do povo”. Para ele, “existe uma desconfiança presente na Constituição quanto à possibilidade de o povo tomar decisões razoáveis ​​por si” e, de acordo com o constitucionalista, essa desconfiança é expressa por meio de uma série de mecanismos, por exemplo, o fato de que o papel dos partidos políticos é mínimo nela[8].

A crítica à Constituição chilena passa, portanto, pelas restrições às mudanças ao próprio texto constitucional, quanto à sua legitimidade, uma vez que foi concebida em meio a ditadura. De fato, o artigo 66 da Constituição do Chile prevê que “As normas jurídicas que interpretam os preceitos constitucionais necessitarão, para sua aprovação, modificação ou revogação, de três quintos dos deputados e senadores em exercício”[9], disposição esta de caráter restritivo ao poder legiferante chileno.

Assim, a atual proposta de revisão constitucional surge em meio  a manifestações populares de outubro de 2019, em que mais de 1 milhão de chilenos vão às ruas protestar, de forma violenta, em enfrentamento a forças policiais, em razão do aumento dos preços do transporte e outros problemas sociais. Após o levante social, o presidente Sebastián Piñera faz a um acordo histórico com os partidos da oposição: efetua o chamamento de plebiscito em busca do que, a mídia internacional, divulgou como sendo “uma nova Constituição”.

  1. Processo Constituinte no Chile: uma nova Constituição?

 Primeiramente, mostram-se importantes breves considerações sobre o poder constituinte. Tradicionalmente classificado em poder constituinte originário e derivado, o poder constituinte originário (no Chile chamado de “poder constituinte original”) corresponde ao poder de fazer uma nova Constituição, rompendo com o ordenamento constitucional anterior. Já o poder constituinte derivado divide-se em derivado de revisão e reformador. O de revisão outorga aos constituintes a prerrogativa de realizar uma revisão do texto constitucional, de caráter mais ou menos amplo, mas de acordo com parâmetros definidos; o reformador, constitui-se do poder de emenda à Constituição, mediante um processo legislativo mais rígido.

O poder constituinte originário efetivamente se presta a dar uma nova Constituição ao Estado e à sociedade. Trata-se de uma “vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar a concreta decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política, determinando assim a existência da unidade política como um todo”[10].

No Brasil, a doutrina de direito constitucional explica que é “bastante controvertida a natureza do poder constituinte”, podendo ser exercido por “um grupo de pessoas que assumiu o poder para governar transitoriamente”, ou por um “órgão cujos membros são eleitos pelo povo”, como uma “Assembléia Constituinte ou Convenção Constituinte”, ou ainda de “forma mista” ou por um“consensual (…) pacto entre forças antagônicas” [11].

Fachin explica que o poder reformador atua por meio de duas formas, para “alterar a Constituição: emenda ou revisão”. A emenda “deve ser utilizada quando se pretende fazer mudanças específicas, pontuais e localizadas (art. 60)”. A revisão, quando “o objetivo for realizar alterações gerais na Constituição (ADCT, art. 3º)”. Frisa, ainda, que, no Brasil, “já se fez uma revisão constitucional, não mais sendo possível utilizar este mecanismo para alterar a Constituição”[12].

O acordo entre os partidos políticos chilenos culminou na realização de um plebiscito para abertura de um processo constituinte. Dessa forma, no dia 25 de outubro de 2020, os cidadãos chilenos submeteram-se a um plebiscito para solucionar duas indagações: 1) se queriam ou não uma Constituição (apresentava-se a opção de aprovar ou reprovar); 2) em caso positivo, qual órgão seria encarregado de produzi-la: a) Uma Convenção Constitucional Mista, com metade de seus membros eleitos por votação popular e outra metade formada por parlamentares já eleitos, que poderiam cumprir ambas as funções (membro da constituinte e parlamentar) ao mesmo tempo ou b) Uma Convenção Constitucional, com a totalidade de seus membros eleita por votação popular.

Como resultado, a maioria absoluta do país, 8 de cada 10 chilenos votantes, optou por não se valer da representatividade dos atuais atores políticos. Trata-se de indicativo popular de repulsa aos atuais mandatários, de modo que a escolha indica a intenção de se formarem novas representações. Assim, novas pessoas – escolhidas entre os cidadãos – foram em momento seguinte (no dia 11 de abril), escolhidos para o processo de renovação do pacto social. Foram eleitos 155 constituintes que possuem o prazo de 01 (um) ano para terminarem de exercer o poder constituinte.

A mídia internacional propagou os fatos de extrema relevância para história recente do Chile, anunciando que o país passará a ter uma nova Constituição. Contudo, não se trata, ao contrário do que em um primeiro momento se possa imaginar, de exercício de um poder constituinte originário.

  1. Conclusões da Observação Internacional 2021 em relação ao Processo Constituinte

Primeira observação relevante: não se constituiu uma assembleia constituinte, mas sim uma convenção constituinte. Não se trata, assim, de um órgão constituído para exercer um poder constituído pleno, de elaboração de uma nova constituição, com prerrogativas de ruptura e alteração dos sistemas políticos existentes.

Durante os trabalhos da delegação brasileira na Missão de Observação Internacional decorrente da atuação da CAOESTE (“Conferencia Americana de Organismos Electorales Subnacionales por la Transparencia Electoral”) e de iniciativa da “Transparencia Electoral”, uma das atividades consistiu em entrevista a constituintes eleitos em abril, Ruggero Cozzi Elzo, constituinte pelo Distrito 6, e Constanza Hube, constituinte pelo Distrito 11, durante evento na Universidad del Desarollo, em 19 de novembro de 2021. Em resposta aos questionamentos, ambos esclareceram que, efetivamente, a convenção constituinte convocada por plebiscito popular não tem por finalidade romper com a estrutura constitucional atual, não se tratando de poder constituinte originário.

De fato, Esteban Silva, sociólogo chileno, reconhece que não foi assegurada uma “assembleia constituinte originária”, já que “não há nenhum poder soberano estabelecido à Convenção”, sendo certo, por exemplo, que os “tratados assinados pelo governo chileno (…) permanecem intocados”. São tratados que, na opinião do sociólogo, “reproduzem a institucionalidade capitalista neoliberal” em que pese defenda, o estudioso, a necessidade de “pressionar as classes políticas para aumentar o poder da Convenção Constituinte e oferecer garantias para a presença de setores sociais, que não estão associados a nenhum partido legal”, mas “que se organizam em movimentos de base, territoriais, estudantis ou sindicais”[13].

Elzo e Hude esclareceram ao longo das entrevistas dadas na visita da delegação brasileira que a  convocação da convenção terá, por outro lado, o poder de reescrever a Constituição. Mas o novo texto deve respeitar a natureza da República do Chile, enquanto sistema político regido por leis, por sua democracia de sufrágio universal, por decisões judiciais definitivas e exequíveis e por tratados internacionais ratificados pelo Chile.

Outro fator a reforçar a conclusão de que não se trata de exercício de um poder constituinte originário é o fato de que o descumprimento dessas regras de atuação da convenção constituinte enseja a formulação de reclamação, cuja competência para julgamento cabe à Suprema Corte do Chile. O texto final da convenção, por fim, deverá ser submetido a plebiscito convocado pelo Presidente. Ou seja, as prerrogativas da convenção constituinte encarregada de reescrever a Constituição do Chile, além de materialmente limitadas por preceitos estabelecidos previamente ao início de seus trabalhos, também se sujeita a um controle jurisdicional repressivo, cujo parâmetro são preceitos imutáveis da própria Constituição que se está a rever.

Assim, da forma como previamente organizado, trata-se de verdadeiro poder constituinte derivado de amplíssima revisão, mas não originário, já que ausente característica essencial identificada por Schmitt, qual seja, o poder de “decisão concreta” quanto ao “conjunto sobre modo e forma da própria existência política” do Estado[14].

Por outro lado, foi possível observar que no Chile, assim como em outros países, “a Constituição vive na crise, apesar da crise, contra a crise”[15]. As crises são sempre momentos propícios a mudanças. O importante é que tais mudanças transcorram tomando como parâmetros valores e princípios democráticos.

 

 

[1] Livre tradução do seguinte trecho: “La transición del Medioevo a la modernidade no fue um viraje súbito (…) que durante más de tres siglos (1350 al 1600 d.C.) fue generando aperturas mentales cada vez más propicias a la incubación de la filosofias modernas. Ese eslabón fue el Renascimiento” (CERDA, Sebastián Burr. El ocaso de la democracia representativa. Santiago: Editorial Arcus, 2020. p. 134).

[2] CUNHA, Paulo Ferreira da. O Contrato Constitucional. Lisboa: Quid Juris, 2014. p. 30-31.

[3] Livre tradução do seguinte trecho: “Las ideologias de la modernidade fueron introducidas (…) a fines del siglo XVIII, por chilenos de alta situación económica que viajaban a París y que las absorbieron del enciclopedistas” (CERCA, 2020, p. 134-135).

[4] Livre tradução do seguinte trecho: “1. Reforma agraria (…) 2. Promoción popular, tendiente a incrementar la participación social y mejorar la calidad de vida de los sectores más desposeídos” (CERDA, 2020, p. 179-181).

[5] Livre tradução do seguinte trecho: “no contaba com instrumentos legales y tampoco eram fáciles de obtener, pues la UP no tenía mayoría parlamentaria” (CERDA, 2020, p. 188).

[6] Livre tradução do seguinte trecho: “la intervención de las Fuerzas Armadas, que derrocaron al Gobierno de Allende y a la Unidad Popular”(CERDA, 2020, p. 190).

[7] FAORO, Raymundo. Assembleia constituinte: a legitimidade resgatada. In: COMPARATO, Fabio Konder. (org.). A República inacabada São Paulo: Globo, pp. 167-265 Apud ARAÚJO, Cícero. O processo constituinte brasileiro, a transição e o Poder Constituinte. São Paulo: Lua Nova, n. 88, 2013. p. 327-380.

[8] VIÑAS, Miriam Henríquez. Professora de Direito Constitucional e Decana da Faculdade de Direito da Universidade Alberto Hurtado, de Santiago. Entrevista à BBC News Mundo. Matéria “O que há de controverso na Constituição do Chile, que agora o país quer mudar”. Publicada em 12.novembro.2019.

[9] Livre tradução do artigo 66 da Constituição chilena: “Las normas legales que interpreten preceptos constitucionales necesitarán, para su aprobación, modificación o derogación, de las tres quintas partes de los diputados y senadores en ejercicio”.

[10] SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1996. p. 93-94.

[11] SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 70-72.

[12] FACHON, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2008. p. 50.

[13] SILVA, Esteban. Sociólogo chileno. Entrevista ao site Brasil de Fato. Matéria: “Após o plebiscito, como será escrita a nova constituição do Chile?”, assinada por Michele de Mello. Publicada em 27.outubro.2020.

[14] SCHMITT, 1996, p. 93-94

[15] CUNHA, 2014, p. 43.