Juliana Cardoso Ribeiro Bastos

Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP. Professora de Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e nas Faculdades Metropolitanas Unidas. Autora da Obra A Ordem Econômica e a Sociedade Aberta dos Intérpretes. Associada ao Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Advogada.

A redemocratização de um país é sempre um motivo para se festejar, uma vez que significa respeito aos direitos fundamentais e, principalmente, ter como pilares de um Estado de Direito a liberdade e a igualdade. O Chile vem em sua história fortalecendo os ideais democráticos desde 1990, com mais força a partir de 2016 quando as manifestações populares se tornaram intensas. Entre os anos de 2021 e 2022, o seu povo tem a oportunidade de manifestar a sua vontade política 11 vezes.

A manifestação popular ocorre não somente para a escolha de seus governantes, mas, também, para um processo de revisão constitucional que, dada sua abrangência, vem sendo denominado como um processo “constituinte”. Trata-se de um projeto constitucional para substituir a Constituição da ditadura de Augusto Pinochet, vigente desde 1980. A realidade política do país é de alta polarização política que chega a preocupar sobre suas consequências para com o processo “constituinte” aprovado pelo povo, por meio de plebiscito, em 25 de outubro de 2021.

A complexidade da vivência democrática de um país dificulta muitas vezes uma classificação exata no sentido de êxito, de recesso ou de crise democrática. Não obstante, valendo-se da pesquisa de Michael Copedge2, sobre as variedades da democracia, o autor indica como índices para a análise da democracia eleitoral: eleições livres e justas; liberdade de associação, liberdade de expressão, extensão do sufrágio e a forma de eleição do Chefe do Poder Executivo. Um dos déficits no desenvolvimento das instituições democráticas chilenas foi o avanço da participação das mulheres na política.

O voto das mulheres que hoje pode parecer óbvio, é considerado uma conquista democrática relativamente recente. Na Arábia Saudita, por exemplo, as mulheres ganharam voz política apenas em 2011 e, ainda, com restrições. No Brasil, a conquista do voto feminino aconteceu em 1932, sendo incorporado à Constituição de 1934 como facultativo, apesar de hoje, com a Constituição de 1988 ser obrigatório. No Chile, o voto feminino foi introduzido em 1934 para eleições locais, sendo estendido a partir de 1949 para as eleições parlamentares e presidenciais, de maneira facultativa como é a regra do voto para todos no país. Isso quer dizer que apenas no século XX os direitos políticos entre homens e mulheres se tornaram iguais.

Na história do Chile, a ocupação de cargos representativos politicamente foi ocupada, primeiramente, por Adriana Olguín de Baltra, nomeada Ministra da Justiça, em 1952; ainda, a primeira mulher eleita Deputada foi Inés Enríquez Frodden, eleita por uma eleição extraordinária em 1951; ainda, a primeira mulher que concorreu ao Senado foi Maria de la Cruz Toledo, eleita em 1953; e, ainda, em 2005, Michelle Bachelet Jeria é eleita Presidente da República.

O movimento feminista nos leva a buscar maior paridade da mulher com o homem nas mais diversas áreas, inclusive, na política. Importante considerar que se está a tratar de uma pauta progressista em um dos países mais conservadores da América Latina, apesar do movimento feminista chileno ser um dos mais relevantes da região, segundo o cientista político Carlos Meléndez.3

Garantir o direito de voto às minorias como, no caso, são as mulheres, não é uma decisão tão unânime, uma vez que a inclusão de novos atores políticos pode alterar as preferências eleitorais. A voz de todos deve ser reconhecida em uma sociedade e de maneira igualitária, isso nos ajuda a, também, compreender a evolução política dos países e de suas instituições. O debate sobre a incorporação da mulher no processo eleitoral tem importante reflexão feita por Abdón Cifuentes (político conservador), em 1865, ao defender o argumento de que se a ordem política pode prejudicá-la como a qualquer outro homem, não se poderia fechar as portas para que pudessem defender e buscar soluções para situações em que se vissem prejudicadas.4

Encontra resistência a partir do argumento de que a paridade de gênero é injusta porque favorece a eleição de “más” candidatas às custas de homens com maior votação. Defendem a meritrocracia no sentido de que quem participa da política deve demonstrar o seu êxito eleitoral e que, portanto, a falta de mulheres se deveria a sua falta de talento.

Esse argumento não se sustenta na medida em que é preciso levar em conta que as mulheres não tiveram as mesmas oportunidades que os homens, uma vez que a grande maioria assumiu na história os trabalhos domésticos e o cuidado com a família.

Nota-se avanços no Chile com a aprovação, pela primeira vez, de uma lei de igualdade de gênero que proporcionou a ocupação de maiores espaços pela mulher na política, garantidos pela quantidade de votos recebidos por elas. A garantia de paridade de gênero acontece por meio de uma dupla estratégia. Explicam Javiera Arce, Carolina Garrido y Julieta Suárez-Cao que é garantida a participação da mulher nas candidaturas e na atribuição de cadeiras.5

Afirmam que a lei de cotas estabelece que nas listas nacionais dos partidos nenhum sexo pode ultrapassar 60% dos candidatos. Isso quer dizer que nenhum dos sexos poderá superar 50% do total de candidaturas que compõem a lista. Contudo, observam que a eficácia da cota é baixa por não ser por distrito, o que permite que os partidos selecionem em quais distritos irão colocar seus candidatos. Explicam que isso cria incentivos para que os partidos protejam seus titulares, em sua maioria homens, e coloquem novos candidatos nos distritos menos competitivos.6 Ademais, existem características próprias do sistema eleitoral chileno que tornam insuficiente a paridade das candidaturas, como a adoção da lista aberta e o tamanho pequeno da maior parte dos distritos. Para um resultado paritário era indispensável a distribuição paritária dos assentos.7

O sistema de paridade chileno, previsto para a formação da Assembleia Constituinte, prevê que se a igualdade entre homens e mulheres não acontecer de forma natural, o gênero que superar o outro em quantidade de votos deverá ceder lugar para corrigir a disparidade. Por isso que, apesar das candidatas mulheres terem sido as mais votadas para a Assembleia Constituinte do Chile, algumas tiveram que ceder suas vagas aos homens a partir da regra da paridade de gênero. De toda forma, uma grande conquista que permite, pela primeira vez, que uma Constituição seja escrita por homens e mulheres na mesma proporção. O resultado contou de um total de 155 constituintes, com 78 homens e 77 mulheres.

Para Carlos Meléndez, “hoje as mulheres chilenas não precisam de ações afirmativas de gênero porque demonstram nas ruas e nas urnas que são uma maioria”8. Ademais, pensando na diversidade da representatividade no Chile, também, pela primeira vez, foram reservados lugares aos índios, que compõem 12,8% da população chilena. Ocorre que aqui, a lei de igualdade acabou por beneficiar os homens, uma vez que das 11 mulheres eleitas que tiveram que ceder seus lugares aos homens, 4 foram indígenas.

Já para a cientista política Marcela Ríos, “sem o critério de paridade, as mulheres não seriam metade das opções de candidaturas. Afirmar que, sem a paridade, teríamos tido mais mulheres eleitas à uma suposição porque, sem o critério, as mulheres não seriam tantas candidatas”9.

Ainda que se considere uma vitória a eleição de Michelle Bachelet, em 2014, para o cargo de Presidente da República, na época não significou avanço na igualdade entre os gêneros. Acrescentam Jaime Antonio Etchepare Jensen e Andrea Carolina Ibañez Villacencio10, que mesmo com a Lei de Quotas, até maio de 2018 não se observou efeitos relevantes da regra. Embora os partidos políticos tenham aumentado o número de mulheres candidatas ao Senado e à Câmara para cumprir percentuais estipulados pela cota de gênero.

As eleições de 2021 trouxeram mudanças. Aproximadamente 15 milhões de chilenos foram às urnas para escolher um novo Presidente, senadores, deputados e Conselheiros Regionais. Mesmo sem utilizar a lei da igualdade para a escolha dos governantes, os números foram expressivos. Nas eleições para vereadores, foram 39% as candidatas mulheres, no caso das prefeitas 23% e 16% para governadoras.

Esse resultado vem de pequenas conquistas ao longo de todo esse tempo como, foi a Lei de Cotas, impulsionada no segundo governo de Michelle Bachelet (2014-2018), que obrigada os partidos políticos a apresentarem um percentual mínimo de 40% de mulheres entre seus candidatos. Essa política já possibilitou que em 2017 houvesse um aumento na representatividade feminina de 16% para 23%.11 Segundo o jornal El País, em termos comparativos, o Brasil está na 161ª posição de um ranking de 186 países sobre a representatividade feminina no poder executivo. “Em primeiro lugar no levantamento, que analisou a evolução histórica da participação feminina no poder Executivo de 1940 até hoje, está a Nova Zelândia, seguida do Chile”.12

Uma conquista que leva a outros questionamentos como, por exemplo, se a partir da grande participação da mulher haveria uma tendência à formação de uma Constituição feminista, com temas sobre a autonomia sexual e reprodutiva ou, até mesmo, sobre a violência contra as mulheres. Essa é uma resposta que talvez só o tempo consiga trazer, já que não existe uma confirmação científica dessa influência, que depende muito da vontade feminina de cada tempo e espaço. O que se afirma é que do ponto de vista estrutural, há uma importância no reconhecimento do espaço da mulher para que seu olhar seja incorporado às políticas públicas de uma sociedade.

 

2 Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/4045. Acesso: 01 de de dezembro de 2021.

3 Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-05/mulheres-sao-mais- votadas-no-chile-mas-lei-obriga-ceder-lugares. Acesso: 29.11.2021.

4 ANGEL, López Varas Miguel; RICARDO, Gamboa Velenzuela. Sufrágio feminino no Chile: origem, disparidade             de                                    gênero        e                          estabilidade,                                 1935-2009.               Acesso: https://revistas.uniandes.edu.co/doi/10.7440/res53.2015.10. Acesso: 30.11.2021.

5 ARCE, Javiera; GARRIDO, Carolina; CAO-SUÁREZ, Julieta. Por primeira vez em el mundo – La constituyente será paritária. Processo Constituyente. Selección de arículos de Monde Diplomatique. Editora: Friedrich Ebert Stiftung, 2020. p.15.

6 Texto original: “paridade em las candidaturas y em la asignación de escanos. La actual ley de cuotas estabelece que em las listas nacionales de partidos ningún sexo puede superar el 60% de las candidaturas. La efectividad de la cuota es baja porque al no ser por distrito permite que los partidos seleccionen em qué distritos ubican a sus candidatas. Esto genera incentivos para que los partidos protejan a sus incumbentes, mayoritariamente hombres, y ubiquen a las nuevas candidatas em los distritos menos competitivos”. ARCE, Javiera; GARRIDO, Carolina; CAO-SUÁREZ, Julieta. Por primeira vez em el mundo – La constituyente será paritária. Processo Constituyente. Selección de arículos de Monde Diplomatique. Editora: Friedrich Ebert Stiftung, 2020. p.16.

7 ARCE, Javiera; GARRIDO, Carolina; CAO-SUÁREZ, Julieta. Por primeira vez em el mundo – La constituyente será paritária. Processo Constituyente. Selección de arículos de Monde Diplomatique. Editora: Friedrich Ebert Stiftung, 2020. p.16.

8     Disponível     em:     https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-05/mulheres-sao-mais- votadas-no-chile-mas-lei-obriga-ceder-lugares. Acesso: 30.11.2021.

9     Disponível     em:     https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-05/mulheres-sao-mais- votadas-no-chile-mas-lei-obriga-ceder-lugares. Acesso: 30.11.2021.

10 JENSEN, Jaime Antonio Etchepare; VILLACENCIO, Andrea Carolina Ibañez. Manual e Formación Ciudadana. Quillón, 2020. Universidade del Desarrollo, p.298.

11 Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-11-03/uma-constituicao-com-perspectiva- de-genero-no-chile.html. Acesso: 30.11.2021.

12 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/27/politica/1522181037_867961.html. Acesso: 30.11.2021.

Referências Bibliográficas

ANGEL, López Varas Miguel; RICARDO, Gamboa Velenzuela. Sufrágio feminino no Chile: origem, disparidade de gênero e estabilidade, 1935-2009. Acesso: https://revistas.uniandes.edu.co/doi/10.7440/res53.2015.10.

ARCE, Javiera; GARRIDO, Carolina; CAO-SUÁREZ, Julieta. Por primeira vez em el mundo – La constituyente será paritária. Processo Constituyente. Selección de arículos de Monde Diplomatique. Editora: Friedrich Ebert Stiftung, 2020.

COPPEDDGE, Michael; BIZZARRO, Fernando. Variedades da democracia no Brasil, 2017. Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/4045.

ENSEN, Jaime Antonio Etchepare; VILLACENCIO, Andrea Carolina Ibañez. Manual e Formación Ciudadana. Quillón, 2020. Universidade del Desarrollo.

https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2021-05/mulheres-sao-mais- votadas-no-chile-mas-lei-obriga-ceder-lugares. Acesso: 30.11.2021.

https://brasil.elpais.com/internacional/2020-11-03/uma-constituicao-com-perspectiva- de-genero-no-chile.html. Acesso: 30.11.2021.