Sobre a integração e autonomia do direito interno das nações em um mundo globalizado, mas heterogêneo, marcado pelo multilateralismo das relações internacionais.

Com o advento dos organismos multilaterais, no início do século XX, com a Liga das Nações e, posteriormente, a Organização das Nações Unidas (ONU), a elaboração de normas entre os Estados soberanos para regulamentarem suas relações internacionais e nacionais entrou na pauta das discussões jurídicas sobre os efeitos de uma integração do Direito interno com o externo. A questão que passou a dividir as opiniões de juristas era a da integração ou autonomia entre o Direito nacional e aquele negociado com outros Estados e o próprio direito internacional (dos tratados e acordos multilaterais) (Shaw, 2010; Accioly, 2012). Assim, para os monistas, o Direito é unitário, correspondendo ao ordenamento jurídico interno, internacional e tratadístico, enquanto os dualistas defendem que as normas jurídicas internacionais e estrangeiras só podem produzir efeitos internos (no Estado soberano) se essas normas forem transpostas ao ordenamento jurídico interno (Mazzuoli, 2013).

A força com que os julgamentos e as normas internacionais passaram a interferir na formação do convencimento dos magistrados brasileiros é muito decorrente da intensificação do papel dos tribunais internacionais na resolução de conflitos envolvendo: direitos humanos e direito ambiental e, ainda, dos avanços verificados na integração jurídico-política da União Europeia; do aumento do multilateralismo das relações internacionais; e da adesão brasileira tanto ao sistema regional da Organização dos Estados Americanos quanto ao sistema universal da ONU (Piovesan, 2011). Muito embora não haja homogeneidade dessa interferência em todos os órgãos judiciários nacionais (Ribeiro, 2013), é correto afirmar que a globalização – considerada multifatorial, isto é, envolvendo aspectos geopolíticos, geoeconômicos e geoestratégicos – impulsiona os Estados nacionais a aderirem às regras internacionais e, quando isso não é suficiente, à mecanismos arbitrais e mediadores de conflitos nos diversos organismos multilaterais criados para esse fim – como servem de exemplo a Organização Internacional do Trabalho e a Organização Internacional do Comércio (Basso & Polido, 2012).

Guardando-se as devidas proporções, é possível afirmar que as transformações operadas em nível geoeconômico e geopolítico, que levaram os povos germânicos a abandonar a aplicação do Direito Romano e valorizar o papel criativo do magistrado para conferir maior eficiência na prestação jurisdicional no século XIX, encontram similitude com a inserção de precedentes judiciais estrangeiros na aplicação do Direito pelo Judiciário brasileiro no século XXI.

Na Prússia e Renânia do século XIX, a constatação de que o sistema anglo-saxão era mais eficiente na resolução de conflitos comerciais, por utilizar o entendimento sedimentado nos tribunais e os costumes comerciais como fontes de direito para a solucionar conflitos de interesses, revela o pano de fundo no qual subjaz a necessidade de proporcionar uma adaptação do sistema romano-germânico às novas dinâmicas da globalização política, econômica e social em curso (Benvenisti & Downs, 2009).

As atuais estruturas institucionais do Estado podem não conseguir dar vazão à plenitude de demandas judiciais que perpassam as novas relações intersubjetivas num mundo globalizado. Nesse sentido, as cortes nacionais encontram-se num processo de reforma gradativa de suas práticas institucionais que, mesmo encontrando amparo no sistema jurídico vigente, ainda não consegue acompanhar as novas regulamentações do comércio, da indústria, da proteção ambiental que despontam no cenário global (Benvenisti & Downs, 2009; Lawson & Seidman, 2017). O que os autores chamam de submissão à legislação estrangeira precisa ser reinterpretado à luz de um modelo de prestação mais célere e eficiente que deriva grandemente da influência política e comercial dos Estados Unidos da América e da União Europeia (Lawson & Seidman, 2017).

Convém salientar, rememorando as palavras de Maria Tereza Sadek, que o Poder Judiciário presta um serviço à população. Isso indica que essa prestação deve estar pautada pelas mesmas diretrizes que são aplicáveis aos demais serviços prestados pelo setor público. Entretanto, não se trata mais de aplicar princípios exclusivamente jurídicos, mas de incorporar às práticas de Judiciary Governance que já se encontram sedimentadas nas práticas tanto de países desenvolvidos quanto de países em desenvolvimento: a administração judiciária deve ser eficiente, efetiva, transparente, eficaz e responsável, seguindo as mesmas diretrizes gerais que regulamentam a ética dos servidores da Administração Pública (Fish, 1973; Millar & Baar, 1981; Quark, 2018; Heyvaert, 2018).

Observando a descrição de Norberto Bobbio da jurisprudência dos interesses, que despontou como uma inovação da Escola Sociológica do Direito, assumindo predominância nos Estados Unidos da América, pode-se constatar quais são as diretrizes mais importantes para a correta aplicação do Direito, frente ao pragmatismo filosófico anglo-saxão que se tornou uma espécie de referência para os juristas brasileiros: o magistrado deve conhecer o meio social de onde emerge o conflito, compreender as atividades profissionais e as características sociológicas que servem de contextualização para suas decisões judiciais (Bobbio, 2010). Procurando trazer uma maior aproximação entre o magistrado e as partes, essa perspectiva não propugna um comprometimento do magistrado com o interesse das partes, mas com os valores políticos e sociais de sua comunidade, além de perspectivar a manutenção desses valores políticos em todos os seus reflexos: nos direitos civis e políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais (Heyvaert, 2018).

Neste pequeno artigo, compilado de texto maior, tenta-se compreender o desempenho da atividade dos magistrados frente às dinâmicas do atual estágio da globalização e a influência do multilateralismo político na reestruturação das instituições públicas, que acaba por atingir o Judiciário nacional. A prova de que a Justiça brasileira avança no sentido de incorporar precedentes judiciais nas sentenças nacionais é apenas o reflexo de aprimoração da globalização do Estado para fazer jus às novas demandas que despontam no panorama das novas relações jurídico-políticas globais.

Compreendendo que o Judiciário é um poder e, ao mesmo tempo, executa um serviço, torna possível avaliar o seu desempenho de forma objetiva: quando as súmulas vinculantes orientam os julgamentos das instâncias inferiores e vinculam os atos administrativos e as políticas públicas que devem ser executadas pela Administração Pública, vislumbra-se a utilização política da função jurisdicional, naquilo em que o Poder Judiciário se revela como autêntico poder político. Quando o cidadão tem o seu acesso à prestação jurisdicional concretizado pelos diferentes dispositivos legais que o autorizam a ingressar com suas demandas, com apoio inclusive de representação gratuita, observa-se um serviço que tenta ser equitativo e que deve ser pautado por diretrizes éticas aplicáveis aos demais serviços públicos.

A possiblidade de expandir os seus critérios de interpretação e aplicação do Direito, promovendo inclusive uma remodelação da técnica do direito comparado para incluir decisões estrangeiras no seu rol de fontes analíticas do Direito, o Poder Judiciário tenta adequar as decisões judiciais aos ditames de uma realidade expandida pela globalização. Como os valores políticos, econômicos, administrativos e sociais encontram-se em constante debate e, ainda, podem ser objetos de demandas judiciais, o Poder Judiciário precisa se abastecer com um manancial informativo que lhe possibilite tomar decisões que encontrem amparo no quadro internacional e, assim, promova uma harmonização entre as decisões praticadas em nível nacional e internacional.

 

KAMILE MOREIRA CASTRO

Juíza e Ouvidora Substituta do TRE/CE. Membro Consultora da Comissão Especial de Estudo da Reforma Eleitoral da OAB Federal (2019/2022). Vice-Presidente Nacional do COPEJE – Colégio Permanente de Jurista da Justiça Eleitoral (2018/2020), onde já exerceu o cargo de Presidente Regional (NE) (2016/2018). Professora de Cursos de Pós-Graduação. Mestranda em Ciências Políticas pela Universidade de Lisboa (I.S.C.S.P.). Mestranda em Direito pela Uninove. Especialização em Direito Processual Penal pela UNIFOR. Especialização em Direito e Processo Eleitoral pela ESMEC/PUC/Minas. Membro do CAOESTE.